Teoria e prática

O monstro da tradução feminista

Nos últimos dias tenho recebido várias mensagens de colegas da profissão que visitaram o blog. Algumas pessoas relataram nunca ter pensado no link entre gênero e tradução. Ao meu ver, isso não é por acaso: atualmente, a tradução feminista possui mais espaço na teoria do que na prática. Porém, talvez mais importante do que isso, é curioso observar que, entre especialistas da tradução, há uma falta de correspondência entre quem afirma apoiar a igualdade de gênero e, entre essas mesmas pessoas, quem se considera uma tradutora ou um tradutor feminista. Na maioria das vezes, quem responde com um “sim” sobre apoiar a igualdade de gênero, responde com um “não” sobre se considerar feminista na sua profissão.

Lembro-me de uma palestra de Nuria Brufau-Alvira, tradutora e acadêmica espanhola, que timidamente discursava sobre esse problema em Israel. Ela dizia que, nos dias de hoje, é muito mais fácil encontrar artigos referentes à tradução feminista do que, de fato, tradutoras e tradutores feministas. Isso porque, a despeito do boom no número de publicações e eventos sobre o tema, a maioria das contribuições continua conectada a abordagens teóricas que apenas um pequeno nicho ao redor do mundo se põe a discutir e aplicar. O resultado é que, embora a tradução seja teoricamente considerada como uma preciosa ferramenta para a igualdade, ela não é abordada como tal nem na academia como um todo, nem no mundo “prático” da tradução. Sendo assim, o mostro da chamada “tradução feminista” continua sendo uma criatura indecifrável e, para usar de eufemismo, olhado (no mínimo) com desconfiança por alguns colegas da profissão. É conveniente, pois, que prefiram deixá-lo na teoria.

Uma vez que a teoria não é compartilhada por um número mais abrangente de pessoas – e, consequentemente, não chega a ser problematizada por quem tem o poder de aplicar estratégias que contribuem à igualdade de gênero –, fica difícil definir o que, de fato, significa ser uma tradutora feminista, e (mais importante do que isso) agir como tal. Pois não se trata apenas de compartilhar um referencial teórico que emergiu nos anos 80/90 e que desde então vem evoluindo das maneiras mais improváveis e felizes possíveis. Obviamente, esse referencial nem mesmo é um corpo homogêneo de autoras e autores que concordam em tudo entre si. Mas a dificuldade que a maioria das pessoas parece ter ao se deparar com o monstro da “tradução feminista” decorre, na verdade, de um ponto basilar: o que mesmo significa feminismo? E o que isso tem a ver com tradução? Melhor deixar como está. Menos risco. A ignorância, assim, acaba atrasando tanto a teoria quanto a prática.

Definir que uma tradutora feminista é aquela que, ao traduzir, contribui para a igualdade, consequentemente parece soar vago demais, obscuro demais, perigoso demais, para quem está de fora, muito embora – ao meu ver – essa seja a elaboração que mais chegue ao ponto da questão. Mas a pergunta que sempre parece ficar no ar para quem a escuta é: parece tudo muito bonito, mas como exatamente fazê-lo? Costumo responder na lata: em primeiro lugar, fazendo precisamente o que você está fazendo agora; trazendo a discussão à tona e ampliando-a para um círculo maior de colegas da profissão, mesmo que você tenha mais questionamentos do que respostas. Como já introduzi nos posts anteriores, isso não é tudo: é possível agir de inúmeras formas e com o suporte de várias estratégias.

Concordo com Brufau-Alvira quando ela afirma que, antes das estratégias, é primeiramente importante analisar quais são as condições em que se trabalha. Perguntar-se, por exemplo, se na empresa em que você trabalha tradutores homens ganham mais do que tradutoras mulheres pode ser início de conversa. Injustiças no bolso tendem a ser uma representação popular e efetiva da desigualdade no mundo do trabalho, e você provavelmente não terá como aplicar técnicas inclusivas num ambiente em que não reconhece a igualdade de salário. Também vale descobrir se a empresa possui uma agenda de gênero, com licenças maternidade (e, em países mais desenvolvidos, também com licenças paternidade). Examinar se as associações em que você está afiliada/o apoiam a tradução feminista, possuem referências ou fóruns especializados no tema é igualmente interessante para se inteirar de discussões.

Depois dessas considerações iniciais, entram as estratégias propriamente ditas, o que significa evidenciar e/ou eliminar do T2 aqueles traços patriarcais que reforçam assimetrias de gênero, optando por uma maneira de se expressar que seja (no mínimo) inclusiva. Digo “no mínimo” pois existem técnicas mais “radicais”, como transferir todo o texto para o gênero feminino como alguns colegas optam por fazer (estratégias mais ou menos intervencionistas, como o “hijacking”). Entender a tradução como uma ferramenta igualitária é focar naquilo que precisa ser traduzido, mas também na maneira como se é traduzido. Como eu disse em outro post, é igualmente fundamental resgatar os trabalhos de escritoras mulheres que por muito tempo foram ignoradas e silenciadas, bem como traduzir textos feministas e textos de traduções feministas vertidos em outras línguas. A colaboração com departamentos de gênero, ONGs e outras comunidades também pode ser valiosa para contribuir com a tradução de um corpus que precisa ser divulgado pelo mundo.

Ao meu ver, todos esses pontos constituem um começo promissor com relação à compreensão do quanto a tradução feminista importa, e o quanto é urgente que nos inteiremos de suas práticas. Isso é, o quanto é importante que o mostro da tradução feminista finalmente se desloque da teoria para a prática. Ainda há bastante espaço de ação: somos ainda apenas um pequeno grupo, e como diz Brufau-Alvira, a maioria das pessoas sequer sabe que existimos (e o que fazemos). É muito conveniente que as coisas tenham sido assim até agora, e que continuem assim ao longo do começo desse século 21. Sabemos que grandes mudanças nunca são realizadas de uma hora para outra, e há incontáveis preconceitos que constituem verdadeiros retrocessos à evolução. Mas como tradutoras e tradutores, não somos invisíveis, nem estamos destinados a ficar debaixo da cama – com e pelas palavras podemos subverter relações de poder que já não se sustentam mais.

2 thoughts on “O monstro da tradução feminista

  1. Muito obrigada pelo texto. Muito esclarecedor, me abriu os olhos e me ajudou a focar, pois vou fazer uma especialização em tradução e já sei q caminho traçar lá. Vc tem literatura especializada para recomendar?

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