Tradução é poder

As palavras importam

Nos últimos vinte anos, temos observado uma crescente insurgência na ideia da “tradução feminista”. A princípio, o termo parece simples: a tradução vista da perspectiva de gênero. Mas assim que começamos a problematizar as verdadeiras e rugosas implicações de encarar um universo já tão complexo como o da tradução sob a ótica do feminismo, torna-se obrigatório repensar todo um cenário de assimetrias, que é materializado pela linguagem.

Atualmente, o número de mulheres tradutoras no mercado excede o número de tradutores homens. Muito embora isso seja verdade em quase todo o Ocidente, essas profissionais – como todas as outras – precisam lidar com uma misoginia reinante que dita não apenas o lugar da mulher na sociedade, mas o que e como algo deve ser dito (ou traduzido). É verdade que muitas tradutoras hoje gozam de respeito e admiração, ganhando prêmios e louvores, mas ouso dizer que mesmo elas já tiveram, ao menos uma vez, sua capacidade questionada pelo simples fato de serem mulheres.

A resistência de se debater gênero na área da tradução surte inúmeros efeitos, entre eles a territorialização por nichos, isto é, a organização do espaço conforme leis tácitas de ordenamento social. Parece complicado, mas na verdade é muito simples se aplicado a um exemplo: mulheres não ocupam o espaço da localização de jogos tanto quanto os homens. Isso porque há uma suposição cultural e arraigada de que os homens dominam esse mundo, assim como o dos esportes e o de áreas técnicas como a matemática e a engenharia. A lista não para por aí.

Soma-se a isso a ideia de que não se pode misturar língua com política e gênero, e a conversa toda debanda no meio de ânimos aflorados, preconceitos e intolerâncias. Discutir a “linguagem inclusiva”, não-sexista, torna-se rapidamente um tabu, uma ameaça àqueles que não estão dispostos a debater tradicionais assimetrias na língua. Mas a verdade é que as palavras têm gênero sim, e a tradução se revela cada vez mais uma tarefa de escolhas e deliberações quanto mais compreendemos que ela pode ampliar ou delimitar visões. Como disse a escritora feminista Rebecca Solnit, nós ganhamos ou perdemos algumas lutas conforme as palavras e a narrativa que utilizamos. Ora, a narrativa do processo tradutório sempre engloba as relações de poder: o poder da linguagem de desenterrar significados, ou enterrá-los de vez.

A tradução não é um trabalho solitário: ela depende do diálogo com o ambiente. Ela também é o lugar da diferença, do encontro, da troca e da mútua transformação. Já se foi a época de considerar o texto traduzido como uma “cópia” do original, ou melhor, como uma “transferência” de palavras entre uma língua de chegada (L1) e outra de partida (L2). Hoje celebramos a tradução como uma nova criação, baseada na interdependência e na tolerância da diferença. A língua, afinal, é um organismo vivo e em transformação, um instrumento político socialmente construído. Sendo assim, como não falar de gênero na tradução?

Leave a comment